Gênero e vidas precárias

A partir de 1997, a filósofa Judith Butler iniciou uma guinada em seu pensamento ao passar a se dedicar à reflexão da fala como uma política do performativo. No meio do caminho, em 2001, ocorreram os atentados de 11 de setembro, nos Estados Unidos. Três anos depois, em 2004, já mergulhada nas reflexões sobre os efeitos, as repercussões e as novas polarizações derivadas daquele ataque sobre o ser humano, o exercício de reflexão de Butler passou a focar sobre o valor da vida humana, as novas formas de fazer aliança e aquilo que com o tempo foi se constituindo como uma teoria performativa de assembleia.

Em 2004, ela publicou Vida precária: os poderes do luto e da violência, cuja tradução saiu no mês passado, no Brasil, pela Editora Autêntica. Nele, Butler começa a fixar alguns conceitos que chegarão mais desenvolvidos em seu último livro, de 2015, Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Vou direto ao que me interessa aqui: os conceitos de condição precária, precarização e precariedade.

Condição precária é a situação universal que torna possível a vulnerabilidade dos corpos de todo ser humano. Ela faz parte do indivíduo, do nascimento à morte, passando pelos contextos inter-relacionais de existência. A condição precária é um dos fundamentos da existência humana. – Um caso como o do pai que espancou o filho de 3 anos por usar batom, em abril passado, em Uberaba, é um exemplo disso, tanto no que toca à vulnerabilidade física da criança quanto no que se refere à vulnerabilidade cultural e cognitiva do adulto.

Precarização é a situação que envolve as relações de poder e política à qual as populações estão sujeitas em sua vida. Uma situação de percepção de insegurança e desamparo, que é, geralmente, induzida e produzida por instituições governamentais e econômicas. – Uma situação de precarização institucional que reflete sobre diversas população vulneráveis é a administração da ministra Damares Alves no tal Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Associado à precarização, o conceito de precariedade diz respeito aos modos de não viabilidade da vida e “implica um aumento da sensação de ser dispensável ou de ser descartado que não é distribuída por igual na sociedade”, como Butler nos refere em Corpos em aliança e a política das ruas. A precariedade é a distribuição diferencial da condição precária. – A alteração de políticas governamentais de caráter afirmativo, voltada para populações vulneráveis, em nome de maior estabilidade econômica e financeira, caracteriza bem o conceito.

E o que isso tem a ver com o livro O espetáculo do gênero, de Igor Viana, resultado da pesquisa do seu Mestrado? Tem tudo a ver e de modo urgente. Se o atual presidente não tivesse sido eleito em outubro passado, talvez a urgência fosse menos urgente. Mas como dizem as gerações ainda mais velhas, fomos pegos de calças curtas, por isso a urgência agora é maior, para não dizer máxima.

A discussão sobre o gênero marcou o início da carreira acadêmica e intelectual de Judith Butler na segunda metade dos anos 80. Seu Problemas de gênero: feminismo e subversão a identidade é de 1990, mas aportou ao Brasil em 2003, colando à filósofa um rótulo que não lhe pertence mais, do qual ela se afastou movida por interesses mais contemporâneos e também urgentes, mas que não deixam de iluminar as questões de gênero.

Se hoje passamos por incansáveis e exuberantes vergonhas (internas e externas), elas já estavam anunciadas no piquete promovido para queimar a bruxa Butler em novembro de 2017, às portas do local de realização do seminário Os fins da democracia, em São Paulo. Butler já estava em outras, mas o fantasma da teoria de gênero ainda a assombrava.

A leitura de O espetáculo do gênero nos conduz inevitavelmente a trazer para a ribalta brasileira a percepção de que nossas condições de existência se tornaram mais precárias, de que nossa situação biopolítica está mais precarizada e de que a precariedade dos modos de viabilizar a vida ficou mais desigual. As calças ficaram curtíssimas agora.

O livro de Igor nos ajuda a olhar para traz e nos desvenda um processo transnacional já bem amadurecido, cuja origem teve início nos recintos do Vaticano, em documentos dos anos 90, com diretrizes que já cunhavam o que viria a ser chamado de ‘ideologia de gênero’, e cujos desdobramentos fortaleceram a busca de alianças com campos de direita na própria igreja católica (Opus Dei à frente), nos movimentos nacionalistas europeus, no neopentecostalismo (sim, católicos e evangélicos estão de mãos dadas, e não há Francisco que as separe), no pensamento econômico ultraliberal e na massa manipulável de defensores dos costumes, da moral e da família. Esse caldo denso foi se formando, cozinhando, fervendo e derramando pela Europa, pelas Américas, pela África. O Ocidente levantou a bandeira antigênero e chamou para o confronto os movimentos pós-identitários, os movimentos sociais, a esquerda esclarecida.

Os instrumentos dessa estratégia são visíveis: a aberração reunida sob o rótulo de psicólogos cristãos, os defensores da Escola sem Partido, as bancadas cristãs nas casas legislativas, os braços sociais dos movimentos religiosos.

Tudo passa a girar, pela milionésima vez (e que falta nos faz Foucault), em torno do controle da sexualidade, da censura às expressões de gênero, da perseguição às identidades de gênero, do reencarceramento das sexualidades dissidentes no armário. As condições precárias, a precarização e a precariedade tomam conta dessa disputa, tornando as condições de sobrevivência e de vulnerabilidade mais difíceis.

Talvez nosso papel seja encontrar uma forma de romper esse ciclo macabro.

Texto de Luiz Morando.

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